Histórias de um professor apaixonado por corridas

Adicionada em 31 de outubro de 2017

O homem corre desde sempre: há 3,6 milhões de anos, nossos antepassados da turma do Australopithecus afarensis perceberam que podiam se sustentar em duas pernas, caminhar meio erguidos e até correr. Logo passaram a matar de cansaço animais não tão capazes de enfrentar longas distâncias. Antes de nos tornarmos pensadores já éramos corredores.

As primeiras corridas organizadas aconteceram no antigo Egito, terra dos faraós, lá por volta de 4100 a.C. Vêm de Mênfis, capital do reino, os mais antigos sinais de provas, provavelmente testes para a escolha de mensageiros dos soberanos — ou talvez parte de festividades religiosas.

Na Grécia antiga são famosos os hemeródromos, corredores mensageiros. Todo maratonista conhece a história de Fidípedes, por exemplo. Alexandre, o Grande, um dos maiores chefes militares daquele período, tinha um pequeno número de corredores especialmente a seu serviço.

Herdeira do povo celta e provavelmente escrava ou serva dos vikings, Hekja é uma das primeiras corredoras a ter seu nome registrado na história. Ela foi deixada na costa norte-americana em 1009 pelo navegador viking Thorfinn Karsefni com a missão de rapidamente percorrer longas distâncias na terra descoberta e trazer notícias do que encontrara por lá.

As corridas curtas, de velocidade, também ganharam adeptos ao longo dos séculos, mas mais proximamente de nossos dias. A primeira pista de atletismo de que se tem notícia foi construída no Lord’s, famoso campo de críquete de Londres. Sua inauguração foi em 1837.

Pérolas e curiosidades como essas, pepitas de informação valiosas para que possamos entender melhor o universo e a alma da corrida humana foram garimpadas ao longo de anos em documentos históricos, registros civis, textos bíblicos e registros nacionais folclóricos por Andrew Peter Milroy, um simpático britânico que neste ano chega ao 71º aniversário.

Modesto, se apresenta como professor primário aposentado. De fato, passou mais de três décadas dando aulas para meninos e meninas de 9 a 11 anos na escola Newton, na pequena cidade de Trowbridge uma comunidade de menos de 35 mil habitantes no sudoeste da Inglaterra.

No meio-tempo, porém, ele mergulhava na busca de informações que o levaram a voos pelo mundo inteiro. Apaixonado por corridas, especialmente as de longa distância, escreveu vários livros sobre ultramaratonas e se imiscuiu mesmo no coração do esporte, participando de entidades definidoras e monitoras das corridas: em 1984, foi um dos fundadores da Associação Internacional de Ultramaratonistas; em 2003, participou da criação da Associação dos Estatísticos de Corridas de Rua.

Amor platônico

O amor pelo esporte Andrew descobriu no início dos anos 1960, quando ainda estava na adolescência: “Assisti à Olimpíada de Roma e ainda hoje me lembro da vitória do italiano Livio Berruti nos 200 metros”, me conta ele em entrevista para a O2.

A beleza da disputa foi ampliada pela paixão nacional quando acompanhou, dois anos depois, em Belgrado, a vitória do britânico Bruce Tulloh, que disparou talvez cedo demais na prova de 5.000 metros e quase foi alcançado pelo polonês Kazimlerz Zimny. Milroy, então no frescor de seus 16 anos, ainda não sabia, mas seu coração já tinha sido fisgado pela corrida, apesar de ele não ter quase nada de esportista. “Era muito desajeitado. Para piorar as coisas, não enxergava bem, o que me deixava mal em jogos com bola.”

Com a corrida, a paixão foi praticamente platônica. Nunca treinou nem participou de provas. Pouco importa. Sua verdadeira paixão eram
os números, as datas, o desenrolar dos fatos. Logo depois da Olimpíada de Roma, em 1960, quando tinha apenas 14 anos, começou a coletar dados sobre corridas. Anos mais tarde, quando já dava aulas em Trowbridge, passou a colaborar com o Clube Britânico de Corredores de Rua (BRRC na sigla em inglês).

“Eu estava interessado em ultramaratonas — a palavra ainda nem existia, só foi aparecer no final dos anos 1970, início dos anos 1980, cunhada pelo norte-americano Ted Corbett — e na época havia pouquíssima informação organizada sobre o assunto.”

Não corredor, Andrew Milroy encontrava na filosofia as razões de sua ligação com a corrida: “A corrida de longa distância é um dos poucos esportes em que uma pessoa comum pode participar da mesma competição em que estão presentes os atletas de elite. Na vasta maioria dos esportes, os entusiastas são reduzidos a meros espectadores; já nas ultras [e nas maratonas] podem se envolver diretamente no esporte”.

 

 

Tudo muito bonito, mas o que vale mesmo são os números. E foi nos números que ele mergulhou, especialmente depois de perceber que ninguém havia ainda feito grandes investigações sobre as ultramaratonas.

Recebeu um apoio inusitado, vindo de um escritor de romances policiais. Peter Lovesey tinha recém-lançado sua primeira história de crime, Wobble to Death (uma tradução possível é Corra para a Morte), em que mergulhava no universo dos wobbles, como eram conhecidos os atletas que participavam de competições de marcha de longa distância na segunda metade do século 19.

O romancista deu várias dicas a Milroy, pontos que poderiam ser investigados na literatura e em registros jornalísticos. Os resultados surgiram logo: em meados de 1970, Andrew Milroy escreveu Distance Progressive Bests, em que alinhavou estatísticas e histórias de eventos de longa distância — de 10 milhas a provas de 24 horas — desde os anos 1890.

Foi o primeiro de uma fieira de obras, em que o mais importante talvez seja o Long Distance Record Book (Livro de Recordes de Longa Distância), que vem recebendo atualizações ao longo dos anos. Há também North American Ultrarunning: a History (História das ultramaratonas nos EUA) e Training for Ultra Running (Treinamento para ultramaratonas).

A produção literária, a participação em entidades esportivas e o interesse por regras, regulamentos, pela ordenação das coisas levaram Milroy a ser diretor técnico da IUA, que tinha ajudado a fundar. Para sistematizar o conhecimento sobre ultramaratonas, produziu um livreto com as regras dessa modalidade esportiva, o Ultramarathon Race Handbook, editado pela Iaaf, a entidade que rege o atletismo internacional e que já estava então, no início dos anos 1990, trabalhando em parceria com a associação dos ultramaratonistas.

Sempre buscando a origem das coisas, a história das corridas, além dos números frios dos recordes, Andrew Milroy acabou por descobrir, na década passada, aquela que hoje é reconhecida como a mais antiga corrida de rua ainda em realização, a italiana Palio del Drappo Verde.

A prova nasceu em 1208, em Verona, como celebração a uma vitória militar. Incluída na legislação da cidade, seguiu ininterrupta pelos séculos afora até o território ser ocupado por Napoleão. Movido pela curiosidade e pelas características especiais da corrida, Milroy se
somou a outros amantes das corridas de rua para apoiar a retomada do Palio.

Um grupo de corredores de Verona abraçou a causa e fez com que a corrida ressuscitasse do limbo em que tinha sido quase perdida. A retomada foi em 2008, com os festejos do 800° aniversário da prova e a realização da edição número 591 (a Palio ficou “dormente” por 200 anos). Em junho passado aconteceu a edição número 600, em que Milroy recebeu as devidas homenagens. Foi onde eu o conheci ao vivo — já tinha lido na internet muitos de seus escritos — e iniciei as conversas que redundaram nesta reportagem.

Primeiro contato com um brasileiro

Viajando pelos quatro cantos do mundo nas asas das corridas de ultralonga distância, Andrew Milroy não apenas recolhia dados como também ajudava a ditar normas, organizava regras e atuava como diretor ou consultor em provas de grande importância, como foi o Mundial de 100 km de 1991, realizado na Itália.

A prova escolhida para o campeonato era uma corrida de estrada, a já então tradicional La 100 Km del Passatore, que percorre um magnífico trajeto na Toscana, com largada em Florença e chegada em Faenza. Foi na Itália que o britânico Andrew Milroy conheceu pela primeira vez um brasileiro, o santista Valmir Nunes, já então (e ainda hoje, apesar dos 53 anos) o melhor ultramaratonista do nosso país.

“Eu era diretor técnico da AIU (Associação Internacional de Ultramaratonistas) naquela época. Valmir Nunes, que não falava italiano, viajou do Brasil, mas chegou ao hotel errado, em uma cidade errada. Ele foi encontrado pela polícia vagando pelas ruas, com muita fome”, diz Milroy.

Segundo ele, Valmir foi levado pela polícia à sede da prova. “Quando lhe deram comida, ele estava com tanto sono que dormiu com a comida na boca”, recorda Andrew Milroy. Isso aconteceu talvez uns dois dias antes da data da prova. No dia da corrida, os atletas se posicionaram à frente da linha de largada, o que significa que cumpririam menos dos que os 100 km programados.

“Como diretor técnico da prova, fui até a frente e mandei todo mundo dar alguns passos para trás. Fiz gestos e tive até de gritar para ser atendido (como professor, tinha experiência em usar voz forte de comando). Aos poucos, eles foram se movendo e tomando posição no lugar adequado”, recorda. 

Andrew Milroy diz que Valmir lembra muito desse episódio: “Fala disso cada vez que nos encontramos. Ele não fala inglês, eu não falo português, mas conseguimos nos comunicar”. Valmir Nunes venceu aquela prova e se tornou campeão mundial em estrada; quatro anos mais tarde, bateria o recorde mundial da distância com a marca de 6h18min09s.

Causo bíblico

Muito antes da primeira Olimpíada da Grécia antiga, textos bíblicos contam histórias de corrida. Aimaaz, filho de Zadoque, é provavelmente o primeiro corredor na história a ser identificado pelo próprio nome — antes, os registros eram genéricos, “mensageiro” e pronto. O caso está contado no Antigo Testamento, no segundo livro de Samuel (2 Sam. 18 v 19-31).

Por volta da virada do primeiro milênio antes de Cristo, ocorreu uma grande batalha contra inimigos do rei Davi, e a mensagem sobre a vitória precisava ser levada ao soberano. Então o comandante militar, Joabe, chamou um mensageiro-corredor para que fosse o mais rápido possível até Davi. O nome do mensageiro não é citado no livro, mas sabe-se que era um “cuchita”, natural de uma região onde hoje fica a Etiópia.

Segundo Andrew Milroy, que cita o caso na introdução de seu livro The Long Distance Record Book, esse é provavelmente o primeiro registro que liga uma nacionalidade à habilidade de correr longas distâncias. Bom, mas sigamos com a história. Joabe chamou o cuchita, mas um de seus guerreiros, Aimaaz, falou que gostaria de fazer a corrida e levar a mensagem. Aimaaz era filho de Zadoque, um dos sacerdotes de Davi e, portanto, tinha as costas quentes. Mesmo assim, Joabe falou para ele se acalmar e mandou o cuchita partir logo.

Aimaaz não se deu por satisfeito e insistiu até que Joabe lhe permitiu fazer o percurso. Saiu em carreira e não só conseguiu ultrapassar o cuchita como também foi reconhecido pelos seguranças da fortaleza de Davi. “O fato de ter tido seu estilo de corrida reconhecido a distância sugere que Aimaaz costumava participar com frequência de competições de corrida”, acredita Andrew Milroy, que também calcula a distância percorrida pelos mensageiros em cerca de 60 km. “Portanto, Aimaaz foi também o primeiro ultramaratonista a ter seu nome registrado”, brinca o historiador britânico.

Rodolfo Lucena

Rodolfo Lucena

59, é jornalista, gaúcho, gremista, cachorreiro, escritor e ultramaratonista – já fez mais de 30 provas longas em cinco continentes. Autor de “Maratonando” e de “+Corrida”, atuou na Folha de S. Paulo por mais de 25 anos, faz o Blog do Lucena (lucenacorredor.blogspot.com) e o Maratonando com o MST (mstmaratonando.wordpress.com).

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