Fernanda Maciel: a rainha das montanhas

Adicionada em 24 de agosto de 2017

Fernanda Maciel sempre teve espírito de atleta. Com 8 anos já viajava o mundo para competições de ginástica artística. Com 10, morava nos Estados Unidos para treinar. A mineira foi pulando de modalidades até chegar à corrida na adolescência. As passadas no asfalto, na verdade, começaram para não precisar pegar o ônibus entre sua casa e a escola, em Belo Horizonte. Ia andando, para não ficar suada, e voltava correndo.

Como em quase todos os esportes que praticou, Fernanda Maciel se deu bem na corrida. A ponto de muitas vezes ganhar mais dinheiro com premiações do que com seu trabalho como advogada ambiental. A boa resistência física e a paixão pela natureza levaram a atleta mineira às provas de longa distância na montanha, modalidade na qual é hoje uma das melhores atletas do mundo.

Prova disso é que nos últimos dois anos subiu ao pódio da temida Maratona des Sables, considerada uma das provas mais difíceis do planeta. São 250 km no Deserto do Saara, divididos em seis dias de competição, além de uma etapa não cronometrada de 80 km. Tudo isso carregando na mochila a alimentação para toda a semana de disputa.

“É a única prova do mundo em que as lágrimas correm no meu rosto quando eu cruzo a linha de chegada”, revela nesta entrevista à O2. A emoção de Fernanda Maciel é apenas mais um indicativo de o quão dura é a Maratona des Sables, já que a brasileira está acostumada a passar por situações extremas, como indica seu currículo esportivo.

A atleta foi vice-campeã do Circuito Mundial de ultramaratonas de montanha em 2014. Também foi a primeira mulher a correr os 860 km do caminho de Santiago de Compostela, entre a França e a Espanha, e a primeira a subir e descer correndo o Aconcágua, montanha com 6.962 metros de altura, em menos de 24 horas.

A peculiaridade do estilo de provas e desafios que disputa levou a mineira a fazer uma pós-graduação em nutrição esportiva, já que era difícil encontrar um profissional que conseguisse entender suas necessidades energéticas até mesmo na fase de preparação para os eventos — mesmo que ela ouse dizer que a maioria de seus treinos é curta. No dia em que conversou com a O2, a mineira já tinha passado 2 horas em cima de uma bicicleta na estrada, além de um período extra na academia.

Pelo segundo ano consecutivo você subiu ao pódio da Maratona des Sables. É a prova mais difícil que já fez?

Sempre ouvi falar da Des Sables como a prova mais extrema de todas no planeta, e muitos corredores querem disputá-la pela fama. Realmente é a única prova em que as lágrimas correm no meu rosto quando cruzo a linha de chegada. O percurso em si não é tão difícil, o que complica é que, por ser autossuficiente, você tem de levar toda a sua comida. E são sete dias em um deserto extremo. Durante o dia faz 50°C e de noite fica entre 0°C e 10°C. Você passa muita fome, seu organismo fica sem energia. E ainda precisa correr 250 km sentindo isso.

Foi seu segundo ano na prova, mudou muito a experiência em relação ao ano passado?

Este ano fui mais bem preparada do que havia ido nos outros. Treinei mais em terrenos planos e passei dois meses no verão no Brasil, o que foi bom para a aclimatação. Onde eu moro na Espanha é frio. E levei muito mais comida este ano, o que foi uma estratégia boa, por mais que tenha largado mais pesada. Levei 8 kg nas costas este ano e fiz 3 horas mais rápido do que em 2016 (24h44min59s contra 27h58min43s). Ano passado, levei 6,5 kg, que é o mínimo permitido.

Você citou a questão da alimentação como uma das mais complicadas na prova. Ter estudado nutrição esportiva deve ter te ajudado nesse ponto…

Tive que estudar nutrição esportiva porque tinha dificuldade de encontrar um nutricionista que conhecesse o tipo de prova que eu corro. E essa experiência me ajudou muito. De manhã, tomava uns pós de carboidrato com musli (cereal de fibras) e colocava só água. Durante a corrida, comia gel e barrinha. Depois, tomava três recuperadores diferentes, eram todos em pó e eu adicionava água. De noite, era cuscuz, missô, aquela sopa japonesa, e comidas liofilizadas que eu colocava água para virar comida da verdade. Até comprei no Brasil, então era arroz, feijão, macarrão. Tudo comida brasileira.

 

 

Sua primeira formação acadêmica não tinha a ver com isso, né?

Sempre trabalhei como advogada ambiental. Estava cansada de tantas horas de escritório e comecei a trabalhar em uma ONG ambiental, foi por esse trabalho até que fui morar na Espanha. Mas sempre corri. E ganhava mais dinheiro correndo do que como advogada, muitas vezes porque vencia algumas provas ou as disputas de categoria. Hoje tenho uma empresa de importação e continuo muito bem como corredora. Durante a vida inteira tive esses dois lados, de profissão normal e de atleta profissional.

Como adulta você sempre correu. Lembra como começou isso?

Comecei com 16 anos porque odiava pegar ônibus. Ia para o colégio andando, para não suar, e voltava correndo. Até hoje odeio. Quando vou para o meu pai, vou correndo. Virou meu meio de transporte. Comecei a fazer provas de 10 km, corri a Volta da Pampulha, a Meia-maratona do Rio e isso sempre me deu uma grana. Sempre que competia, ganhava dinheiro e acabava que alguma marca se interessava por mim, pagava viagem para eu correr. De certa maneira, o esporte sempre foi profissional para mim.

Você treinou ginástica olímpica na infância, até morou nos Estados Unidos para isso… Como foi se encontrar nas corridas de montanha e nas ultras?

Meu primeiro contato com a montanha foi em 2006, quando fiz uma meia e uma maratona em montanha na Nova Zelândia. Depois, em 2008, a North Face me convidou para fazer uma prova nos EUA. Logo em seguida fui morar na Europa a trabalho e aconteceu um boom. A primeira ultra que fiz lá, a Ultra-Trail du Mont Blanc, eu ganhei. E isso foi ótimo. Consegui mais uns pódios e acabei fechando contratos de patrocínio. A partir daí virei atleta profissional. Acho que me ajudou muito também o fato de eu ser de Minas Gerais e sempre ter corrido subindo e descendo a ladeira, além da minha paixão pela natureza e por competir. 

Você vive e treina na Espanha, certo? Como é sua rotina de preparação diária?

Moro numa vila de 80 habitantes e isso é ótimo para mim. Meu foco é na corrida e nos treinos, não tenho uma vida social. Isso me ajuda bastante. Faço dois a três treinos diários, mas são treinos curtos, de umas 2 horas, porque já acumulei muitos quilômetros no decorrer desses anos. Curtos, mas de muita força. Faço tiros de subida, às vezes carregando peso. E no final de semana são os treinos longos. Na montanha, não contamos em quilômetros, mas em horas. Na semana, meus treinamentos variam entre 15 e 35 horas. Muitas vezes treino na bicicleta, o que é bom para ganhar força de quadríceps e volume de treino sem o impacto da corrida. E também faço esqui de montanha, porque no inverno é o que dá para fazer onde eu moro. E às vezes também escalo.

E você se prepara não apenas para competições, mas para desafios com cunho social, não é?

Eu criei um projeto chamado White Flows, em setembro vou fazer a quinta edição. Tem um desafio superdifícil de corrida e uma mensagem social que quero dividir com meus seguidores. O próximo é no Monte Kilimanjaro, que eu vou subir e descer correndo. Em paralelo a isso, vou correr ao lado das crianças de lá porque quero que todo mundo veja que elas precisam de apoio. Ali não tem nada para comer, é realmente muito pobre. Esses projetos são muito difíceis, mas minha preparação para as provas é perfeita para eles.

Confira dicas de Fernanda Maciel para quem for encarar provas de montanha ou ultramaratonas:

1)- Força e resistência

“Na montanha há trechos muito técnicos de subida e descida. Então é preciso tirar um pouco de velocidade do treino e incluir força e resistência. Ache um parque bonito e passe o dia correndo. Também dá para buscar uma rua ou montanha que pareça ser impossível de subir e tentar correr até o topo. Esses desafios tornam a corrida de montanha fascinante.”

2)- Aproveite a paisagem 

“São lugares maravilhosos. Eu vou correr no Monte Fuji, no Japão, nas montanhas do Colorado, no Mont Blanc. Não é só uma corrida. Isso é bem bacana da corrida de montanha. Tento chegar ao lugar da competição com duas semanas de antecedência porque aí dá para fazer treinos longos na montanha, tirar foto, respirar. Durante a prova não dá.”

3)- Evolua aos poucos

“Tem que evoluir aos poucos, com paciência. Começar a colocar mais quilômetros na planilha gradualmente, ir aumentando e em um fim de semana arriscar fazer uma rodagem de 40 km ou 50 km em um parque ou de uma cidade até a outra.”

4)- Pedale

“É preciso ter muito cuidado com o joelho porque o impacto da corrida é grande. Então acho legal colocar a bike na rotina. Pegue um treino a que já está acostumado e coloque mais 2 horas de bike. Assim você trabalha volume, que é o que você precisa, sem muito impacto.”