Barefoot: a arte de correr com os pés pelados

Adicionada em 15 de maio de 2018

Uma coisa é fato: o corpo precisa estar em harmonia para você se movimentar bem durante a corrida — e são os pés e as pernas os principais parceiros dessa jornada. A forma como correr descalço se relaciona com o resto do corpo durante as passadas também é tão importante quanto ter um bom tênis de corrida.

Vitor Carrara, educador físico, especialista em fisiologia do exercício, treinador e corredor de montanha, idealizador e facilitador do curso livre de corrida ancestral, e Bruno Mascella, fisioterapeuta especialista em análise e reeducação da biomecânica de corredores, começaram a correr descalços e descobriram que sentir os pés literalmente no chão não era só uma questão de liberdade.

Correr sem tênis é uma alternativa para recuperar a mobilidade do corpo todo e fortalecer os pés — que vivem presos em sapatos, sandálias de salto alto e tênis repletos de amortecimento e tecnologia. Não que seja errado correr com calçados específicos para o running, mas a corrida sem proteção exige mais consciência corporal. Descalço, a experiência é diferente, mais precisa, mais respeitosa e mais eficiente.

Na prática, quando corrigimos a técnica, nossa postura muda e a forma como corremos, também. É bem difícil correr descalço e distraído ouvindo música, por exemplo. Outra coisa: a corrida descalça fortalece a musculatura dos pés, confere flexibilidade a tendões e ligamentos e, portanto, resistência. Muitos corredores têm pernas muito fortes e pés fracos, o que provoca um desequilíbrio no corpo que desencadeia lesões — a fascite plantar é uma delas.

“Pés de sapato”

O conforto e o estilo de vida atual fizeram com que a maioria de nós perdesse a habilidade do movimento. Sabia que nossos pés já estão bem diferentes da época em que correr descalço era nossa atividade principal para sobreviver como caçadores coletores? (Veja o infográfico abaixo para entender essas modificações.)

O restante do corpo também sentiu o impacto da mudança de estilo de vida: passamos a maior parte do tempo sentados na frente do computador, do celular e da televisão. A inércia por longos períodos transforma movimentos simples (como saltos, ficar de cócoras e rolamentos) em complexos pela falta de mobilidade e flexibilidade.

Mas calma, dá para resgatar essas funções perdidas com mudanças simples no dia a dia. “A solução não é voltarmos para a África e vivermos como caçadores coletores, tampouco abandonar os tênis para sempre. Mudanças de hábitos e uma reeducação segura é que vão permitir que nossos corpos não se afastem tanto de sua biologia natural. Dessa forma, conseguimos correr de forma mais segura e saudável, com ou sem calçado”, sugere Vitor Carrara, em seu curso sobre corrida ancestral, destinado a treinadores e especialistas da área.

Lesões em corredores descalços x lesões em corredores de tênis

Em meio a tantas lesões comuns entre corredores, o que se observa na literatura científica é que aqueles indivíduos que correm pisando com os calcanhares desenvolvem mais lesões nos joelhos e no quadril; já corredores descalços, que predominantemente correm com a parte frontal do pé, são mais suscetíveis a lesões nos tornozelos e pés.

“Quando se trata de lesões inespecíficas (não se sabe a causa direta), determinar causa e efeito é um grande erro para quem busca entender lesões na corrida. A melhor forma de entendê-las é buscar uma visão integrada, analisando fatores fisiológicos, biomecânicos, carga de treinamento, alimentação, entre outros. Juntos, esses elementos determinam os verdadeiros riscos de lesões”, completa Vitor Carrara.

É treinando que se consegue

Antes de sair correndo descalço por aí, é melhor fortalecer os pés com pequenas mudanças de hábitos, como andar mais descalço em terrenos e superfícies irregulares. Areia, troncos caídos, grama e subidas ajudam a estimular a ativação do arco dos pés.

Fazer treinos específicos, como agarrar pequenos objetos com os dedos e pisar descalço em bolinhas de tênis também ajuda. Além disso, toda atividade que envolve posturas de equilíbrio e uso da força dos pés no chão é ótima para desenvolver a força do núcleo dos pés. Modalidades como pilates, yoga, artes marciais e alguns tipos de dança são especialmente benéficas.

 

 

A relação dos pés com o chão

Existem três formas de fazer o primeiro contato com o solo: com o calcanhar (retropé), com o meio (mediopé) ou pela ponta do pé (antepé). Uma recente pesquisa publicada no Journal of Sport and Health Science, sobre a corrida e a forma como pisamos o solo, aponta que 95% dos corredores calçados aterrissam com os calcanhares, 4% utilizam o meio dos pés e 1% o antepé. Corredores descalços aterrissam predominantemente com a parte frontal dos pés (antepé).

“Essa prevalência dominante de aterrissagem do calcanhar se deve ao uso de calçados de conforto extremo que facilitam o contato inicial com o solo pelo retropé. Tendo em vista que o ser humano evoluiu sem grandes tecnologias de calçados, e corre há mais ou menos 2 milhões de anos, o padrão biomecânico de corredores descalços possivelmente representa a forma mais natural da corrida”, explica Bruno.

O especialista enfatiza que a forma de aterrissagem do corredor tem como influências a velocidade, o tipo de solo onde se treina e o calçado utilizado. Outro fator é a largura da passada à frente do tronco. “Quando o indivíduo tem uma passada muito larga, com os joelhos hiperestendidos, tende a ter um pico de impacto nas articulações, se comparado a pessoas que fazem passadas mais curtas”, esclarece o fisioterapeuta.

Eu corro descalço

Filipe Chaves, chef, modelo e corredor, SP

“Comecei a correr descalço na praia e vi quanto é interessante sentir os pés no chão. Corri na grama, na montanha, até chegar ao asfalto. É normal ralar os pés no concreto, por isso é preciso ter certos cuidados — analisar o local da corrida e o horário para não queimar os pés por causa do sol escaldante são alguns deles. Ultimamente tenho colocado fitas adesivas resistentes na sola, nas regiões onde sinto mais o impacto.”

Leonardo Nunes, corredor barefoot e instrutor de yoga, DF

“Percebi uma nova proposta de correr. A nossa mecânica de pisada descalça muda completamente. Eu botava o calcanhar no chão quando comecei a correr, como a maioria dos corredores faz. Foi necessário todo um trabalho de auto-observação. Entrei na onda dos tênis minimalistas, com drop zero, que obrigavam a pisar com o mediopé. No começo, a panturrilha, a sola do pé e os dedos doíam muito. Vejo pedaços de galho no chão, vou até eles para pisar em cima, nas britas, em tudo, para estimular e fortalecer a sola do pé e o jeito de pisar. Para trajetos difíceis ou em horários de asfalto muito quente, adaptei uma sandália de borracha.”

Valéria Duarte Garcia, educadora física com mestrado e doutorado em neurociências e comportamento pela USP e corredora barefoot, SP

“Já fazia umas corridinhas descalça, mas foi só em 2015, quando comecei a estudar sobre corrida minimalista e depois fiz o curso de corrida ancestral que decidi experimentar tudo aquilo no meu próprio corpo. Se o ser humano corre há aproximadamente 2 milhões de anos, não seria eu que iria decepcionar. Fui aumentando as distâncias, os tipos de provas e percebi que me sentia muito mais à vontade descalça do que com os tênis.”